Em 12 anos, mais de 30 mil transcrições foram feitas, permitindo que o próprio cego leia as cartas endereçadas a ele. ‘É uma questão de dignidade, de cidadania’, diz Mário de Oliveira, que, como a mulher, Margarida, utiliza o serviço

Márcia Maria Cruz – Estado de Minas

Imagine que as contas de água, luz e telefone chegam à sua casa, mas você não pode lê-las a tempo de pagar no prazo, ou que chegue um convite de casamento e que você não irá por não poder ler a data, horário e local. A situação, que parece pouco provável, foi parte da rotina do casal Mário Alves de Oliveira e Margarida Luzia de Paiva Oliveira, ambas de 72 anos. Com deficiência visual, por muitos anos os dois não puderam saber qual era o conteúdo das correspondências que recebiam a não ser quando eram auxiliados por alguém. Essa situação mudou quando os Correios criaram a Central Braille. O serviço, que foi implantado em 5 de outubro de 2007, completa neste sábado 12 anos

A Central Braille recebe textos em escrita comum (digitados ou manuscritos), os converte para o código braille e providencia o envio ao destinatário. Por meio do serviço, chamado de Postal Braille, foram realizadas mais de 30 mil transcrições nesses 12 anos de existência. O conteúdo das correspondências é protegido pelo sigilo profissional. Cerca de 50 instituições públicas e privadas utilizaram a Postal Braille dos Correios nos últimos dois anos para enviar correspondências transcritas para o braille a clientes e usuários. Os Correios implantaram o serviço para ampliar o acesso das pessoas com deficiência visual ao serviço.

Mais de 900 deficientes visuais são cadastrados pelos Correios. Por mês, são traduzidas de 160 a 180 correspondências, sendo que mais de 80% delas são de Minas. O serviço é feito por um empregado dos Correios. O tempo gasto é variável, dependendo de cada correspondência (tamanho, dificuldades quanto à leitura e revisão, etc.). Minas e o Rio Grande do Sul são os estados que mais usam o serviço. Há também uma pequena quantidade de correspondências de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Sergipe


Correspondências podem ser lidas com a ponta dos dedos
Foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Mário ficou cego em decorrência de dois acidentes na infância: aos 10 anos um galho acertou seu rosto, esmagando um dos olhos. Dois anos depois, quando brincava de faroeste com os amigos, recebeu uma flechada no outro olho. Desde então, Mário ficou sem o sentido da visão, mas diante da mudança nunca deixou de buscar uma vida normal. Já na vida adulta, percebeu que alguns direitos não eram garantidos aos cegos, como a simples leitura das correspondências. Como a correspondência é um documento inviolável, o problema parecia não ter solução. No entanto, em 2007, houve a compreensão de que com a anuência do remetente e do destinatário o documento poderia ser traduzido em braille.

Basta fazer um cadastro e a correspondência segue para a central. Depois de devidamente traduzida, ela chega ao destinatário. “É uma questão de dignidade (poder ler as cartas), de cidadania. É um valor abstrato que não tem preço”, diz. No caso de contas, por exemplo, as informações essenciais são escritas em braille, como o consumo, valor e data do vencimento. O documento em braille é acompanhado do original. “A questão é facilitar a vida de quem é cego. O indivíduo que não lê fica em situação social complicada.”

Margarida, que é professora, trabalhou por 25 anos sem ler o contracheque, a não ser que alguém o fizesse para ela. Ela defende que, no serviço público, os contracheques do funcionário cego possam ser enviados pelos Correios. O casal tem dois filhos: Mário, de 38 anos, e Marcelo, de 36. No entanto, os filhos já têm suas próprias vidas. “Margarida e eu somos dois cegos morando sozinhos. Quando a correspondência chega e não temos como ler é um problema. Temos que pedir a alguém para olhar a conta de luz. A gente fica com a condição de cidadão muito arranhada”, diz. Essa situação impede a autonomia e aumenta a sensação de que pessoas com deficiência visual são inválidas. “Nossa luta é para acabar com rótulo da invalidez imposto durante milênio. Ainda vai demorar muitos anos. Se não tivermos autonomia, vai demorar mais ainda”, diz.